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MB Especial: Yasuke, louvado seja, de invencível samurai à adaptação da Netflix

 

    Yasuke foi o primeiro e único samurai negro do Japão, isso lá no século XVI. O que se sabe sobre a chegada dele em terras nipônicas é que ele veio acompanhado de um italiano que estava em missão jesuíta, além de que, é claro, o fato óbvio: ele não estava lá porque queria, assim como os negros que chegaram ao Brasil, Yasuke também havia sido escravizado.

    Sua chegada se deu no Japão por volta de 1579, como servo de um tal Alessandro Valignano, inspetor das Missões Jesuítas na Índia (ou seja, África Oriental e partes sul e leste da Ásia) e eu acho importante ressaltar que, nessa missão, eles não estavam ali para catequizar ninguém. Claro que o Yasuke não foi o único negro levado para o Japão nessa época, mas ele com certeza causou muita comoção por onde passou. Existem relatos de que as pessoas subiam umas nos ombros das outras pra poder ver ele no meio da multidão, e algumas até morreram pisoteadas por causa disso.

    E foi justamente toda essa comoção, tanto por causa da cor da sua pele quanto por causa da sua altura, que o daimiô, senhor feudal, Oda Nabunaga ficou tão interessado nele. E aqui a gente volta pro presente e já começa a entrar nas nuances do anime, pois a parte da adaptação que o Oda mandou banharem o Yasuke e perguntou se ele tinha se pintado de preto bate perfeitamente com os registros históricos e eu cheguei a prender o fôlego enquanto estava assistindo!

    Têm outras coisas que também foram bem adaptadas, como por exemplo o fato de que o Yasuke acabou se tornando um amigo de confiança do Nabunaga. Eles se tornaram tão próximos que o Yasuke realmente estava presente na hora que ele cometeu o seppuku, suícidio ritual por honra, quando tomou o golpe de um dos seus generais. Inclusive, a história diz que o Yasuke carregava a espada do daimiô e que, no momento do suicídio, Oda pediu que o próprio Yasuke entregasse sua cabeça decepada ao seu filho. Vocês têm noção do nível de amizade, confiança e honra que essas ações representam dentro da história do Japão??

     A grande questão é que, historicamente falando, a lenda do nosso afro samurai termina pouco depois desse ponto, apenas quatro anos depois de ter começado, quando após oferecer sua espada ao shogun inimigo e ser recusado, ele provavelmente se junta novamente aos jesuítas ou é exilado, e nunca mais se ouve falar de Yasuke, aquele que possuía o espírito guerreiro e a força de dez homens dentro de si.


    Eu acabei de lembrar que Chadwick Boseman, nosso eterno Pantera Negra, tinha sido escolhido para interpretar Yasuke nas telas do cinema e meu coração tá doendo por que eu nunca vou ver o elo entre as minhas duas histórias favoritas acontecer. Mas tudo bem, porque agora que fizemos a nossa viagem por uma parte da história do Japão Feudal, podemos voltar à atualidade para papear sobre a adaptação da Netflix e os seus erros e acertos.

    Se você estiver lendo isso aqui depois de ter assistido a adaptação, você já sabe o erro óbvio da história toda: esse anime foi vendido como ~~a grande adaptação bibliográfica sobre o único samurai negro do Japão~~ quando, na verdade, nem tem como ser tão bibliográfica assim! Bruxo021 já deu o papo a muito tempo: “‘cês rusharam pra *aralho, mas caíram no meu bait” e é exatamente por isso que a gente não pode se deixar iludir com relação às adaptações feitas por serviços de streaming!

    As adaptações feitas por esses serviços não têm como público-alvo o meio já consumidor desse tipo de conteúdo. A Netflix não está dublando Jojo pra quem já assistiu Jojo ou já é fã da franquia, ela está dublando Jojo pras pessoas que estão começando a ver animes agora ou pra pessoas que simplesmente não se importam com essa categoria, mas querem ver um desenho dublado. Essas adaptações são feitas para atingir o maior número de pessoas possível, e na moral, me diz aí: quantas pessoas que não são “otaku e afins” conhecem a história do Yasuke? E dentro até das que já conhecem a história dele, quantas assistiriam uma obra bibliográfica? Por favor, seja sincero com você mesmo nessa resposta, porque a gente sabe que as pessoas não gostam tanto de biografias de verdade, elas dizem que gostam porque é chique, mas na primeira oportunidade (a menos que sejam realmente fãs da pessoa em questão) elas vão achar uma coisa mais interessante pra consumir!

    Uma coisa mais interessante, tipo… uma história de samurai, mas com um robô (que acha que os negros são todos do mesmo lugar) e alguns personagens com poderes. É isso! Essa é a parte fantástica e scifilesca existente dentro dessa adaptação. E se não fosse por causa dela, muita gente não ia ter se prestado a clicar em “assistir” e levado o primeiro episódio até o fim.

    
    Eu vi algumas pessoas falando que não existe uma adaptação histórica aqui e eu discordo demais, demais mesmo, de quem está dizendo isso, pois desde o primeiro episódio a história de vida do Yasuke no período feudal está sendo contada e, tipo assim, realmente é só isso que a gente sabe sobre a vida dele. O cara é uma lenda e simplesmente sumiu, não é como se tivesse muito pra contar. Inclusive, preciso dizer que achei incrível o LeSean ter colocado uma russa como uma das vilãs, por que bem, isso é muito história do Japão!

    Depois da 1ª Guerra Sino Japonesa, os russos, que antes achavam que os japoneses eram inofensivos e não tinham poder bélico suficiente para um conflito, começaram a achar que a Rússia era um “muro” que protegia a Europa dos “bárbaros amarelos”, e isso sob o mandado do Kaiser Guilherme II, ali na época da 1ª Guerra Mundial. Algum tempo depois, em 1905, o Japão, depois de ganhar a Batalha de Tsushima, virou e perguntou: Rússia, porque choras?

    Agora sobre o padre endemoniado... eu acho que não preciso explicar todos os motivos pelos quais a Igreja Católica como um todo pode ser considerada, no mínimo, doida. Além disso, dentro da história nipônica, houve um período de repressão ao catolicismo romano e infelizmente (porque eu amo a história do Japão) isso não convém para esta resenha em específico.

    Mas não espere que os acontecimentos do anime parem por aqui, porque são muitas reviravoltas e algumas inclusive quase fizeram minha sobrancelha grudar no couro cabeludo! E a parte do enredo acaba por aqui porque ninguém merece spoiler de graça, né?



    Com relação ao design e a animação, o anime realmente entrega bons frames, cenas bem animadas e cenários bonitos. A adaptação foi feita pelo Studio Mappa, já conhecidíssimo nosso, com direção do LeSean Thomas, um famoso produtor multiprofissional negro (e eu digo isso pra ressaltar a importância de profissionais negros trabalhando em histórias que nos representam). O designer e a movimentação das cenas são excelentes com ótimos enquadramentos que dão mais realismo e fluidez pras cenas de luta, mas se você não gostar de ver sangue, isso pode não ser tão bom, assim, porque aqui tem MUITO sangue e MUITA cabeça rolando pelo chão!

    As músicas de abertura e de encerramento dos episódios são realmente muito boas e pesam muito na dramatização da história.

    A Netflix pode não ter cumprido o que originalmente prometeu, mas não é por isso que Yasuke se torna uma adaptação ruim ou qualquer coisa do tipo. Independente do que você considere uma obra biográfica, eu vejo a existência desse anime como sendo necessária.

    LeSean fez um trabalho incrível quando se propôs a fazer com que a “tradicional” animação japonesa tocasse as pontinhas dos dedos no afrofuturismo e, sinceramente, eu não esperava nada menos que não fosse subarashii (esplêndido) vindo dele. Ahh, uma coisa muito importante: tem cenas pós-créditos, ok?

    A verdade sobre essa adaptação da Netflix é que ela se propõe a fazer o que a história não pode: dar uma continuidade e um fim para a lenda do invencível samurai. Especificamente, no segundo episódio, o Yasuke diz que “nosso passado aponta para o futuro, mostra quem somos” e eu acredito nisso com toda a força que existe dentro de mim. O passado de Yasuke nos diz que ele foi um guerreiro orgulhoso e a presente adaptação nos mostra que independente de ter voltado para os jesuítas, ter fugido e então se exilado para viver uma encarnação em que salva  uma menina super poderosa de outras pessoas super poderosas, ele continuou vivendo em honra até seu último suspiro e isso basta.

    Acho válido contar que a maioria das informações históricas escritas aqui foram aprendidas nas seguintes circustâncias: 1) com a professora Rose, a melhor professora de História, no ensino médio; 2) estudos feitos pelo maravilhoso mundo da interwebs e 3) alguns cursos e aulas sobre a História da Ásia que eu já tive a oportunidade de participar. Não consigo me lembrar o nome de todos e saber exatamente qual me ensinou o quê, mas cito os dois mais recentes: Do ópio à sopa de morcego (um minicurso sobre racialização amarela) e o Curso em Atualização em Estudos Asiáticos, que eu ainda estou fazendo, mas que engloba a Ásia como um todo! Também houve uma mesa apresentada no XIII Congresso Internacional de Estudos Japoneses no Brasil que falou especificamente sobre a representatividade negra dentro dos animes e mangás.
    
    Se você gosta ou quer aprender mais a história do Japão, recomendo que dê uma olhada nos seguintes links:

- Canal Hey, Ju! Listen! (abordagem do conteúdo em vídeos específicos, mas de forma descontraída)
- Komorebi (conteúdo sobre língua japonesa)
- Drive sobre reflexões asiáticas (material do curso "Do ópio à sopa de morcego" incluso)
Nátalia Cardozo

Nátalia Cardozo

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